contra a transfobia
Trans enfrentam preconceitos para viver identidade com liberdade
Iniciativa do movimento Mães pela Liberdade, o dia da Visibilidade Trans é comemorado em 29 de janeiro
Franciele Marcon [fran@diarinho.com.br]
JOCA BAGGIO
ESPECIAL PARA O DIARINHO
Após se perceberem de um gênero diferente do que lhes foi atribuído no nascimento, as pessoas transexuais travam verdadeiras batalhas para viverem sua identidade. Além do risco eminente de serem vítimas de violência aumentar a cada dia [devido ao fundamentalismo religioso e aos retrocessos observados no Brasil atual], elas não contam com uma legislação que as proteja, são excluídas do mercado de trabalho, têm dificuldade para acessar serviços de saúde, são hostilizadas nas escolas e muitas ainda sofrem com a incompreensão e a rejeição familiar.
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Nos últimos anos, no entanto, várias conquistas foram obtidas no árduo caminho percorrido. O direito das pessoas da comunidade T serem tratadas pelo nome que escolheram foi legitimado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, com a possibilidade de alteração do sexo e do nome no registro civil. Isso quer dizer que o registro pode ser alterado sem a necessidade de se buscar esse direito na Justiça e sem a realização de cirurgia de redesignação ou terapias hormonais. Antes esses eram requisitos fundamentais. “Uma conquista histórica, já que gênero não é definido pelo genital”, explicam as entidades defensoras dos direitos das comunidades LGBTQI+ [sigla que diz respeito a orientação sexual e ao gênero do indivíduo].
Outra conquista, depois de histórica luta da comunidade T é a realização das cirurgias de redesignação sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, embora o direito seja assegurado há mais de duas décadas, a fila de espera é de quase 10 anos. O Conselho Federal de Medicina também divulgou em janeiro do ano passado uma resolução que reduziu de 21 para 18 anos a idade mínima para a realização da cirurgia.
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Travestis e transexuais mulheres podem também se beneficiar da cota que estabelece a obrigatoriedade mínima de 30% de candidaturas femininas por partido nas eleições. Há também cotas para que pessoas T acessem o ensino superior. Porém, há o problema de evasão escolar: boa parte acaba deixando a escola antes de completar o ensino médio, devido ao preconceito e discriminação que sofrem. Mais um exemplo de que a criminalização da discriminação não tem ainda o efeito que se esperava.
A transfobia [que é uma gama de atitudes, sentimentos ou ações negativas, discriminatórias ou preconceituosas contra pessoas transgênero] também impedem que as pessoas vivam seu verdadeiro eu ou protelem o processo de transição. O maior medo ainda acaba sendo com relação às poucas oportunidades que o mercado de trabalho formal oferece aos transexuais. As pessoas temem não obter uma colocação e acabar tendo que que se prostituir. E o pior é que as estatísticas comprovam essa triste realidade.
Números da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontam que só 4% dessa população têm um emprego formal e 90% têm que recorrer a prostituição como fonte de renda. “É um caminho difícil, mas tem muita gente engajada nessa luta. Aos poucos a situação vai melhorando e vamos ocupando os espaços. Mas o caminho é longo”, diz a jornalista transexual Gabryella Garcia.
Inclusive, foi o preconceito e a discriminação que fizeram com que ela esperasse chegar aos 28 anos para iniciar sua transição, embora ela se sentisse mulher desde os 15. “Eu era um homem branco, de classe média e com acesso à informação, o que possibilitou que eu tivesse pleno conhecimento da realidade enfrentada pela comunidade T”, revela a jornalista, que esperou se estabilizar profissionalmente e mostrar um bom trabalho na área que escolheu para iniciar o processo. Mesmo assim não foi fácil. “Me impus a meta: concluir a graduação, consolidar meu nome no mercado de trabalho e mostrar minha capacidade profissional. A transição ficou para o segundo plano”, acrescenta.
Jornalista encontrou barreiras na vida profissional
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Hoje Gabryella escreve para o Portal UOL, Congresso em Foco, integra a redação do jornal digital ES Hoje [em Vitória, Espírito Santo], tem um podcast no Portal Hypeness e textos publicados com frequência em veículos de grande abrangência. Mas não foi fácil chegar no patamar em que está hoje. Paulista e ainda do gênero masculino, resolveu vir para Florianópolis para iniciar a transição. “Mesmo tendo o apoio da família e da minha namorada, achei que seria mais fácil estando longe”, conta.
Conseguiu um bom trabalho, no qual permaneceu por mais de um ano, quando foi transferida para Blumenau para a implantação de uma unidade regional da empresa. “Diante da confiança em mim depositada, achei que minha capacidade profissional estava comprovada e iniciei a transição. A partir daí passei a ser advertida com frequência com relação ao fato de me vestir “como mulher” e em menos de um mês estava demitida”, conta.
Após a injusta e infundada demissão Gabryella ficou sem chão. Mas se recompôs e foi para o mercado. Novas portas se abriram e a jornalista, inclusive, integrou a redação do DIARINHO. Mas na época morava em Blumenau e precisava se deslocar diariamente a Itajaí. “Foi no DIARINHO, já como uma mulher trans, que resgatei minha autoconfiança e vi que poderia alçar voos mais altos”, relata. Hoje ela está realizada profissionalmente e mantém o relacionamento que tinha com a namorada heterossexual. “Sou uma trans lésbica,” explica. Gabryella faz tratamento hormonal e não tem plano de fazer a cirurgia de redesignação sexual tão cedo.
Militância em prol do direito de ser
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“Falta representatividade política e entendimento por parte da sociedade”. A afirmação é de Telma Cristina Issa de Freitas, membro do movimento nacional Mães pela Diversidade e primeira suplente na coordenação do movimento em Santa Catarina. Mãe de Salomé, Telma nasceu em São Paulo mas cresceu em Goiânia. Há cerca de sete anos a família mudou-se para Balneário Camboriú [procuravam uma cidade menos preconceituosa para Salomé viver] e hoje ela e o marido João vivem em Porto Belo. E mais do que sua militância, que não é pequena, o amor e aceitação com que fala da filha emocionam.
“Aos quase 60 anos, eu que era mãe de um rapaz gay, me considerando livre de qualquer preconceito e amarras da sociedade, fui informada do nascimento de minha filha trans, e confesso que chorei. Como abrir mão de um filho tão querido, tão especial? Como deixar ir embora essa pessoa tão linda? Não ver mais sua figura, chamar seu nome, abraçar meu menino tão importante na minha vida? Meu filho, meu amigo, meu anjo libertador que me ensinou o verdadeiro significado de amar e ser mãe. Depois de alguns dias de angústia e sofrimento, voltei meu olhar para a tristeza que sempre acompanhou a vida do meu filho. E entendi que, mais uma vez, teria que me despir do meu egoísmo e ter muito mais força e mais amor, para deixar nascer minha linda filha: trans. Pois, enfim, a lagarta tinha vencido o casulo que a aprisionava para deixar nascer a linda borboleta que estava presa e sufocada por tantos anos”.
Esse é apenas um pequeno trecho que Telma publicou nas suas rede sociais, como forma de educar a sociedade cm relação ao tema, tão pouco conhecido e, ao mesmo tempo, tão discriminado. A iniciativa é da militância nacional do movimento Mães pela Liberdade, no dia da Visibilidade Trans, 29 de janeiro. A ideia surgiu em 2004, quando um grupo de ativistas trans participou, no Congresso Nacional, do lançamento da primeira campanha contra a transfobia.
A ação foi promovida pelo departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, para ressaltar a importância da diversidade e respeito para o movimento trans. A data passou, então, a representar a luta cotidiana das pessoas trans [especialmente as que se encontram em situação de vulnerabilidade] pela garantia de direitos e pelo reconhecimento da sua identidade.
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Só que muito pouco mudou desde então. Era esperado que o ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta onde estão as políticas do governo Federal para minorias, nada fizesse à respeito, já que esse ministério tem sabotado programas ligados à igualdade racial, diversidade e gênero, e o projeto do governo atual é bem claro. Levantamento da organização Gênero e Número aponta que o ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos utilizou apenas R$ 333 milhões dos R$ 617 milhões empenhados em 2020. Foram investidos apenas R$ 42 milhões em políticas públicas para mulheres e, em políticas públicas para a população LGBTQI+, mesmo com R$ 800 mil empenhados, nada foi investido.
“Mas essas tentativas diárias do governo destruir nossa militância, do fundamentalismo religioso massacrar nossos filhos e da total falta de apoio e programas governamentais para as minorias só tem nos fortalecido. Se eles pensam que vão nos derrubar, só estão nos fortalecendo, pois a cada dia lutamos com mais garra e determinação”, diz Telma não apenas com relação à organização Mães da Diversidade, mas também em nome de outras entidades que militam a favor da causa. “Embora muitos de nossos filhos estejam literalmente morrendo, a causa está ganhando força e isso tem que mudar”, diz, acrescentando que hoje só pensa em lutar, cada dia mais, para que sua filha possa ter paz e tranquilidade para ser quem ela é.
Vítimas da violência
Em 2020, segundo números da Antra, 175 pessoas transgêneros foram assassinadas no Brasil, quantidade que supera em 41% os 124 casos registrados em 2019. Outro dado que choca é que todas as mortes foram de mulheres trans.
Os dados refletem exatamente a realidade da violência transfóbica existente no Brasil.
Apoio da família e bullyng na escola
Com Salomé Abdala Issa de Freitas também não foi diferente. Ele se descobriu gay na adolescência e assumiu sua orientação sexual aos 13 ou 14 anos. Teve a total aceitação e apoio da família e passou por bullyng na escola. Mas isso não o impediu de tocar a vida. Graduada em Design de Moda, consolidou sua carreira profissional como figurinista de teatro, professora de história da moda e modelagem para costura, além de dar vida a drag queen Dita Hammer. Foi só depois de bem colocada no mercado que iniciou seu processo de transição, aos 30 anos.
Hoje, aos 33 anos, Salomé diz que não teria feito diferente. “Acho que seu tivesse feito a transição na adolescência, sequer teria concluído a faculdade. Quem dirá conseguir uma colocação no mercado”, confessou à mãe. E mesmo assim ainda sente que há preconceito e discriminação.
Quando a família é que oprime
Dara Oliver, 25 anos, nasceu em Curitiba em uma família extremamente religiosa. Inclusive, sua mãe é pastora de uma igreja neopentecostal. Foi um menino lindo, só que não se sentia assim. Se via como uma garotinha e cresceu assim, oprimindo seus desejos, vítima de bullying, de discriminação pelos colegas de escola e, principalmente, sob constantes advertências da mãe, religiosa ultraconservadora.
Encheu-se de coragem e resolveu sair de casa, vindo morar na casa de parentes da família em Gaspar, onde, dois anos depois, deu início ao seu processo e transição. Apaixonada por maquiagem, aperfeiçoou sua técnica autodidata e conseguiu um trabalho em um salão de beleza na cidade, onde morou por cerca de 11 anos. Amadureceu e transformou-se em uma linda mulher.
“Graças a Deus a genética foi generosa comigo. Nunca precisei de hormônios e cirurgia de mudança de sexo, nem pensar. Sou extremamente feliz como sou”, conta Dara, que hoje mora em Londres e trabalha como modelo e maquiadora. Namora um homem “heterossexual” e se sente feliz por estar longe do Brasil. “Aqui [Inglaterra] passo despercebida pelas ruas, me sinto livre dos olhares curiosos que me seguiam pelas ruas no Brasil”, diz Dara.
Assim como Dara, é muito grande o número de pessoas que precisam sair de casa para fazer sua transição. Só que poucos recebem o mesmo acolhimento que ela. A grande maioria acaba caindo nas ruas. Muitas acabam exploradas sexualmente, dependentes químicas e vivendo em condições sub humanas. “É um grave problema estrutural e social que pode ser minimizado com políticas públicas”, arremata Telma, da organização Mães pela Diversidade e Mães pela Liberdade.