Lembro que na casa onde nasci, havia uma grande parreira que tornava o pátio um lugar mágico com folhas verdes e galhos retorcidos ao alcance da mão. Coisa rara quando se é criança. No fundo desse pátio tínhamos um mundo de mistérios no quarto de bagunça (como dizia minha mãe). Afinal, acredito que toda casa tem o seu, um cantinho da bagunça, cheio de quinquilharias que não servem mais.
 
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Esse quarto era fechado com uma chave preta muito grande e maior do que minha mão de criança. Na escuridão sentíamos o cheiro de mofo e desviávamos da teia de aranha para achar brinquedos perdidos, bicicletas aos pedaços, um abajur fora de moda, restos de tinta, revistas, livros didáticos velhos, relógios parados e um violão com uma corda só. Delicioso recanto para deixar que a fantasia tomasse conta de nossas mentes infantis. Ahh! Para entrarmos lá, tínhamos que roubar a chave e fechar por dentro para a mãe não interromper nossa viagem no escuro com luzes que entravam pelas frestas da parede.
O fato é que esse quarto de minha infância servia para ‘guardar’ coisas que perdiam o valor para os adultos e adquiriam um enorme valor para o mundo infantil. Hoje, o eu-adulto criou um quarto – não na casa, mas na vida – e resolveu colocar lá quinquilharias que não me servem mais depois de viver mais de cinco décadas.
Espero apenas que essas ‘sobras’ não sirvam para as futuras gerações brincarem de ser adultos. Quero que seja um quarto fechado e sem chaves. O que decidi guardar lá?
Coloco toda semana nesse quarto de quinquilharias coisas que não me servem mais. Para lá já foi a minha paciência com a mediocridade dos egocêntricos e sua cobiça; foi também o meu ânimo diante de projetos malucos que cabem num papel, mas não causam mudança na vida real; coloquei num canto bem escuro do quartinho, aquelas reuniões infinitas onde discutimos pautas sem fim ou normas que regem a vida alheia; e esqueci numa prateleira empoeirada aqueles discursos inflamados defendendo a igualdade enquanto seu algoz locutor faz conchavos e negocia porcentagens de verbas públicas; pendurei entre as teias de aranha um móbile feito com melodramas baratos daqueles que só pensam em seu umbigo sem considerar os problemas alheios. Fechei a porta e joguei a chave fora.
Mário de Andrade um dia denunciou que “as pessoas não debatem conteúdos, apenas rótulos”. Quero meu quarto cheio de rótulos e o céu cheio de conteúdos. Que assim seja!
Fica a dica:
O filme NÃO OLHE PARA CIMA (Direção Adam Mckay. Ano 2021) é uma película necessária quando assistimos as bizarrices cotidianas na política de nosso país em uma tela que (simplesmente) usa de uma narrativa ficcional para que vejamos o ódio ao conhecimento e a ignorância vendidos como produto. Filme que deixa a porta do quarto de quinquilharias entreaberta.